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A situação actual se, por um lado, mostra uma diminuição do contacto directo com a natureza de uma geração para outra (um estudo dirigido às mães revela que 71% delas brincaram ao ar livre na infância, contra os 31% das suas crianças que actualmente o fazem), por outro, indica uma progressiva habituação a ambientes ecologicamente degradados (rios poluídos, lixo, desaparecimento de áreas arborizadas na vizinhança) .
Com efeito, a sociedade urbana, hoje em dia, opta cada vez mais por formas de contacto simbólico com o ambiente natural, mediante o qual a criança configura representações formais e supervisionadas de uma natureza meramente virtual, num processo de «extinção» da experiência que parece correr em paralelo com a extinção global da biodiversidade. E, embora, um leque amplo de literatura especializada, escorada em investigações que contemplam inúmeros casos-de-estudo, aponte com reincidência os benefícios das afiliações positivas com a natureza no bem-estar cognitivo, psicológico, emocional e espiritual dos seres humanos, o progressivo empobrecimento e destruição do ambiente continua e concorre perigosamente para a destruição da maturação bem sucedida das aquisições e construções psicológicas da criança. Para o psicólogo Peter Kahn a resolução de toda a problemática implicada nesta «amnésia geracional» de ambientes naturais ricos e biodiversos começa, justamente, pela própria infância:
"Precisamos de comprometer as crianças numa educação ambiental construtivista a fim de maximizar a exploração e a interacção com a natureza que ainda existe ao seu alcance - insectos, animais domésticos, plantas, árvores, vento, chuva, solo, sol".
Kellert sublinha o facto de ainda não se conhecerem, na sua total amplitude e a longo-prazo, os efeitos na maturação psico-cognitiva infantil de quotidianos pobres em estímulos apropriados e com escassas oportunidades de experiência directa no mundo natural. Pergunta Kellert, poderá o reforço substancial dos contactos indirectos ou simbólicos com a natureza substituir e, até, compensar a perda acelerada dos arrabaldes naturais próximos das habitações? O extraordinário aumento da informação tecnológica que proporciona o acesso a realidades naturais distantes e exóticas, ou o constante aperfeiçoamento no design de zoos e similares tendo em vista recriacções ‘fidedignas’ do habitats originais constituirão uma vantagem geracional efectiva? Até agora, as investigações que procuram dar resposta a estas questões têm mostrado que os efeitos positivos no conhecimento pessoal das realidades naturais experienciadas de forma indirecta são transitórios e raramente contribuem de forma significativa para o desenvolvimento emocional e cognitivo da criança, talvez porque, como afirma Robert Pyle, as crianças necessitam de espaços livres para jogar às escondidas, subir uma árvore, trepar as rochas, descobrir atalhos por entre o matagal. O contacto directo com os seres vivos (amoras, mirtilos, morangos, insectos, aves e mamíferos) e físicos (ar, solos, águas, rochas), afecta a criança de um modo que nenhuma experiência simbólica pode substituir. Porque a riqueza dessa relação estrutural modela e amplifica toda a riqueza multi-dimensional humana: o sentir em toda a sua gama de cambiantes (espanto, aversão, atracção, medo, afecto), o pensar (curioso, experimentalista ou meditativo), o comunicar, o criar.
«Falta hoje um sentido generalizado de intimidade com o mundo vivo»; uma intimidade que se funda na sensibilidade originária, participativa e comprometida com o mundo natural, desencadeada pela experiência viva e plena de alegria que todos sorvemos do seio da natureza e que, sem dúvida, concorrerá para a modelação de uma «vontade boa» capaz de agir em prol da natureza e das realidades não-humanas.
Maria José Varandas - excerto do artigo, “EDUCAR NA NATUREZA: A via de harmonização da sensibilidade e da moralidade na formação de uma consciência ambiental”, em pré-publicação na KAIROS, JOURNAL OF PHILOSOPHY AND SCIENCE, LISBOA: CENTRO DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS DA U. LISBOA