quarta-feira, 12 de novembro de 2014

A Medida do Sofrimento - para uma ética da alegria

In paths untrodden, (…)
Here by myself away from the clank of the world, (…)
Strong upon me the life that does not exhibit itself, yet contains all the rest,
Resolv’d to sing (…).
Walt Whitman, Calamus

(tradução da autora:)
Por caminhos inexplorados, (…)
Aqui a sós comigo, longe das grilhetas ruidosas do mundo, (…)
Sentindo em mim a vida que não se exibe e contudo tudo contém,

Decidi-me a cantar (…).

1.        
Os animais mostram-se muito mais satisfeitos com a mera existência do que nós.(…)
Ao animal falta tanto a ansiedade como a esperança, porque a sua consciência se restringe
ao que lhe é claramente evidente no presente: o animal é o presente encarnado.
Schopenhauer, Sobre o Sofrimento do Mundo


Vive connosco essa pergunta inicial e fatal: quem sou eu? Persegue-nos, acompanha-nos, desdobra-se, transforma-se, adormece, para depois despertar ainda mais plena de seiva.
Arranca-nos da rotina; coloca-nos na rotina: sacode-nos, embala-nos, enlouquece-nos.
Quem sou eu?
Ensaiamos soluções; praticamos respostas. E nunca nenhuma se mostra definitiva.
A dinâmica da existência, o devir que nos constitui, bafeja-nos com a alegre e trágica siamesa da vida que é a mudança. Heraclito bem o sabia. Outras são as águas ao reentrarmos no rio. Quem sou eu é algo que vai na corrente, que tem que aprender a nadar enquanto olha para si (tarefa impossível?), a querer-se compreender.
E que dizer desse rio?
E dos outros seres que me acompanham?

2.        
Se conseguirmos alhearmo-nos das nossas preocupações imediatas e encarar o mundo como um todo e o nosso lugar nele, veremos que existe algo absurdo na ideia de que as pessoas têm dificuldade em encontrar por que viver. Afinal, há tanto que precisa ser feito.
Peter Singer, Como havemos de viver?

Seja eu quem for, sou com os outros, em permanente relação, influência e condicionamento recíprocos. Coabito a Terra em parceria que – sei – deve evitar o conflito, a perturbação agressiva, o desequilíbrio que pode conduzir à morte – de espécies, de habitats, de culturas, do mundo natural, da nossa casa, nosso ecossistema.
O que precisa ser feito – por cada um de nós; por todos – é tomar consciência das consequências dos nossos gestos, das nossas atitudes e ações.
Se desconhecemos quem realmente somos (pois “um sentido nunca se completa enquanto há vida”1, é contudo certo que “estamos sempre dentro da nossa própria cabeça”2 e que “[o] que quer que sejamos (…) é como uma espécie de codificação que (…) se vê convocada para uma consciencialização, ou liberdade, que pode construir tudo outra vez.”3
A liberdade permite o erro e permite também a sua correção, a aprendizagem dos caminhos que conduzem ao bem ou ao mal, para que a escolha ocorra da forma desejada. Desejável.

3.        
[O] trabalho a fazer, e que é mais difícil de reconhecer, consiste nas mudanças necessárias que dizem respeito aos padrões diários de atenção. Olhar as aranhas. Olhar os céus. Passear. Fazer jardinagem. Alimentar os pássaros. Falar com os animais. (…) Esta é a espécie de “etiqueta” de que eu falo: não reivindicar todo o espaço para nós mesmos, aprender a ouvir, aprender a acolher um maior mundo, outras presenças, re-equacionar as nossas vidas.
Anthony Weston, Is it too late?

Sou um ser livre que deseja.
Desejo ter e criar prazer. Ou bem-estar. Ou felicidade.
Para Stuart Mill, felicidade é prazer e ausência de sofrimento. O princípio da maior felicidade afirma que esta é aquela que dá mais prazer e menos sofrimento ao maior número possível de pessoas.
Partindo deste (ainda que discutível) pressuposto, perguntamos: será a felicidade apenas atributo das pessoas humanas? Bem-estar e sofrimento são estados exclusivamente humanos? Posso ser feliz se os outros – humanos e não-humanos – o não forem? Viverei bem com o meu bem-estar se a meu lado alguém – pessoa ou (?) animal – estiver em sofrimento? Não sou eu um ser-em-relação, permanentemente em relação? E em relação, de que forma? Com base em que representação dos outros seres e de mim mesma?
Lancemos a provocação:
“Tanto para Singer como para Regan, seriam pessoas todos os primatas e, tendencialmente, todos os mamíferos com mais de um ano.”4
Sobre este tema-problema (definição do conceito de “pessoa”, na sua eventual oposição ao conceito de “animal”), apresentamos as seguintes posições (vide Anselmo Borges, Deus e o Sentido da Existência, Gradiva, Lisboa, 2011, p. 54):
- o predomínio, no Ocidente, da conceção kantiana que só reconhece direitos às pessoas humanas;
- o movimento animalista, que defende a tese de que há animais não humanos que são pessoas;
- a proposta de um modelo de sociedade que reconhece a dignidade dos humanos mas tem em atenção o valor dos animais;
o que requer argumentar em torno da noção de “pessoa” que cada indivíduo ou corrente tiver como sua. Assim, transcrevemos os seguintes excertos (in Anselmo Borges, op. cit.pp. 54/5:), na tentativa de avançar na opção por um modelo justo de conduta:
“Num texto famoso de 1789, Jeremy Bentham inquiria: Qual é a característica que confere o direito a uma consideração igualitária? E respondia, perguntando: «Será a faculdade da razão ou, talvez, do discurso? Mas um cavalo adulto é, para lá de toda a comparação, um animal muito mais racional, assim como mais sociável, do que um recém-nascido de um dia, uma semana, ou até de um mês. Mas suponhamos que não era assim; de que serviria? A questão não é: consegue raciocinar?, consegue falar?, mas: pode sofrer? »5 

O chamado utilitarismo moral coloca o centro precisamente na capacidade de sofrer e de sentir prazer. Para Peter Singer, defensor célebre desta concepção, os seres sensíveis têm interesses, concretamente o interesse do maior prazer possível e da menor dor possível, seguindo-se daí que, ao contrário da concepção anterior, temos deveres directos para com todos os seres capazes de sentir. (…) [E]screve textualmente, em ´´Etica Prática: «Devemos rejeitar a doutrina que coloca a vida dos membros da nossa espécie acima da vida dos membros de outras espécies. Alguns membros de outras espécies são pessoas; alguns membros da nossa não o são. De modo que matar um chimpanzé, por exemplo, é pior que matar um ser humano que, devido a uma deficiência mental congénita, não é capaz nem pode vir a ser uma pessoa.»
(…) A filósofa Adela Cortina, [em] Las fronteras de la persona, atravessa toda esta problemática para defender a sua tese[:] A vida é valiosa por si mesma, mas ainda mais a dos seres sensíveis, que têm a capacidade de sofrer e ter prazer. Os animais têm um valor intrínseco e não meramente instrumental, havendo, por isso, uma obrigação directa de não lhes causar dano.”
Retomando a posição utilitarista, verificamos que Singer “postula a igualdade de consideração ética para todos os seres sencientes (…). Assim, «se um ser sofre, não pode haver nenhuma justificação moral para recusar ter o sofrimento em consideração. […] Se um ser não tem capacidade de sofrer ou de sentir alegria ou felicidade, não há nada6 para ser tido em conta. Logo, o limite da senciência7 […] é a única fronteira defensável para a preocupação pelos interesses dos outros.»”8
É também de referir que há “correntes biocêntricas e ecocêntricas da Ética Ambiental [que] pretendem alargar ainda mais o critério de consideração moral, reportando-o, respectivamente, ao fenómeno da vida e à noção de ecossistema.”9
Não posso, portanto, viver bem com a dor espalhada e espelhada à minha volta. Não posso aceitar senão o universal como princípio de conduta. O meu horizonte de ação é o mundo e o universo de seres vivos que o habitam. A maior, a única felicidade será a que, pelo menos, trouxer bem-estar a todos os entes sencientes. Aquela que os resgatar da dor que possam sentir. A que permitir da melhor forma que a diversidade de vida animal – e da Vida no seu todo - prolifere em natural equilíbrio. Ao proposto imperativo de Hans Jonas10 que proclama
«Age de tal modo que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida autenticamente humana sobre a Terra»,
acrescentaria, responsabilizando-nos:
«Age de tal modo que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida autenticamente humana que promova a permanência da diversidade e a felicidade das outras formas de vida sobre a Terra». 
Por sobre as intransponíveis (porque constitutivas) situações de sofrimento que qualquer forma de vida experiencia e saudavelmente procura evitar, sobressairia, então, aplicado este imperativo, o rosto da alegria, multifacetado na diversidade de vidas que a Vida alberga.

    4.  
[A] medida do sofrimento aumenta no homem muito mais que o gozo, o que é em grande parte realçado no facto de, na realidade, ele saber o que é a morte, enquanto o animal [não humano] apenas instintivamente foge dela sem de facto a conhecer e, portanto, sem a ter em vista, o que o homem, pelo contrário, tem sempre presente.
Schopenhauer, Sobre o Sofrimento do Mundo

Como escapar ao sofrimento, se ele nos constitui? (Não será ele a medida da ética?)
De que quero eu, humana, ser salva (curada, rendida, remediada, resgatada)? Do sofrimento? Isso conduzir-me-ia à impossibilidade de contactar com a realidade e à ignorância do que seria a alegria.
Disso, não quero ser salva (salvação exterior).
Disso, não quero salvar-me (salvação interior).
Quero a vida tal como ela é e eu posso melhorá-la (nós podemos melhorá-la).
Também não quero a eternidade. Quero completar o sentido da minha existência passando pela porta da morte (por essa porta que é a morte). Lá chegarei (lá, lugar; lá, tempo, instante). Consciente disso, percebo que esta casa onde vivemos a prazo é a minha e é a dos outros seres (os que já conheço e os que posso e quero vir a conhecer).
Há tanto a fazeri; há tanto a salvar, há muito a resgatar da aniquilação a que o espécime humano condenou.
Há todo um planeta a cuidar. É desejável mantê-lo, vivo e diverso. Pois a diversidade da vida antecedeu-nos e coube-nos em herança – a proteger.
Para isso, há que cuidar deste ser que vejo no passeio, ouço no ramo da árvore, liberto do cativeiro do zoo, devolvo à vida natural que é a sua, prescindo de incluir na minha alimentação, ajudo a perseverar no seu ser11.
Para tal, é forçoso enfrentar e ultrapassar as contradições e incongruências da minha conduta diária. Com algum sofrimento? Decerto; mas com muito, muito mais alegria.

Maria José Pessoa
novembro 2014 
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1 José Maurício de Carvalho, http://www.ufsj.edu.br/portal2-repositorio/File/revistaestudosfilosoficos/art3-rev5.pdf
2 Valter Hugo Mãe, Crónica «Autobiografia Imaginária» - “Pessoas”, in Jornal de Letras nº 1147, 17 a 30 de setembro de 2014
3 Ibidem
4 in Cristina Beckert, «Ética Animal: uma contradição nos termos?», in
Cristina Beckert (org. e coord.), ´´Etica Ambiental – uma ética para o futuro, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2003, nota 12, p.62
Proponho, para progredirmos na investigação deste tema, a seguinte definição de pessoa: sujeito que age de forma consciente, voluntária e intencional.
5 Sublinhado nosso  
6 Não há mesmo nada?
7 Senciência: capacidade de sentir, de perceber os efeitos das impressões sensíveis (ap. Dicionário Houaiss do Português Atual)
8 In Cristina Beckert, op. cit., pp. 56/7
9 Ibidem, nota 5 da p. 57
10 in Le Principe Responsabilité - Une Éthique pour la Civilisation Technologique, Éditions du Cerf, pp. 30-31 (cit. in Contextos – manual de Filosofia do 10º ano de escolaridade, Porto Editora, p. 162)
11 Albert Schweitzer, filósofo alemão e Prémio Nobel da Paz em 1952, considerava que todos os seres vivos possuíam uma will-to-live, uma vontade de viver que merece ser respeitada e preservada. Na obra Civilization and Ethics e referindo-se ao ser humano que vive o princípio da reverência pela vida, Schweitzer (1923) escreveu:
Se ele sair à rua após uma tempestade e vir uma minhoca que se perdeu, ele compreende que ela secará ao Sol se não alcançar rapidamente terra húmida onde rastejar, e então ele remove-a das pedras mortíferas e devolve-a à relva luxuriante. Se ele passar por um insecto que caiu numa piscina, dá-se ao trabalho de lhe fazer chegar uma folha ou galho no qual ele possa trepar e salvar-se.
Manuel Magalhães-Sant’Ana, “Consciência animal: para além dos vertebrados”, in Jornal de Ciências Cognitivas da Sociedade Portuguesa de Ciências Cognitivas
(http://jcienciascognitivas.home.sapo.pt/09-03_santana.html 

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i Como demonstração de que é possível fazer o tanto que precisa ser feito, sugiro a consulta do relato de um projeto já concretizado, com excelentes resultados:
Ana Maria Bettencourt e Manuel Carvalho Gomes, Nos Trilhos dos Açores – Educação para a Cidadania, Tinta da China, março de 2014.