sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Uma vida feita poesia feita natureza

Ninguém é pai de um poema sem morrer.
MB

Não que ele achasse, e sem rótulo (que ele não gostava e eu não gosto), mas a sua é uma poesia que namora com o ambiente, dado o respirar da terra que mora em suas escolhas para palavrear o que sentiu e pensou, viu e saboreou.

Morreu. Foi. Legou-nos tudo o que “amarrou no poste” (A gente nasce, cresce, amadurece, envelhece, morre. Para não morrer, tem que amarrar o tempo no poste. Eis a ciência da poesia: amarrar o tempo no poste.). E tudo é tanto. E tudo é belo.
Desde o dia 13 de novembro de 2014 que o sentido da sua vida se completou. E o sentido da sua poesia, esse, temo-lo aí, aqui mesmo. Basta ler. Sortudos – estendemos a mão e a alcançamos os livros de Manoel de Barros.

Manoel de Barros, poeta brasileiro, 1916-2014,
amou ser neste planeta.

Por exemplo, assim de repente:

Esse homem pois que apreciava as árvores de sons
amarelos- ele se merejava sobre a carne dos muros
e era ignorante como as águas.
Nunca sabia direito qual o período necessário para
um sapato ser árvore. Muito menos era capaz de
dizer qual a quantidade de chuvas que uma pessoa
necessita para que o lodo apareça em suas paredes.
De modo que se fechou esse homem: na pedra: como
ostra: frase por frase, ferida por ferida, musgo por musgo:
moda um rio que secasse: até de nenhuma ave
ou peixe. Até de nunca ou durante. E de ninguém
anterior. Moda nada.
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Borboleta morre verde em seu olho sujo de pedra.
O sapo é muito equilibrado pelas árvores.
Dorme perante polens e floresce nos detritos.
Apalpa bulbos com os seus dourados olhos.
Come ovo de orvalho. Sabe que a lua
Tem gosto de vaga-lume para as margaridas.
Precisa muito de sempre
Passear no chão. Aprende antro e estrelas.
(Tem dia o sapo anda estrelamente!)
Moscas são muito predominadas por ele.
Em seu couro a manhã é sanguínea.
Espera as falenas escorado em caules de pedra.
Limboso é seu entardecer.
Tem cios verdejantes em sua estagnação.
No rosto a memória de um peixe.
De lama cria raízes e engole fiapos de sol.
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- Difícil de entender, me dizem, é a sua poesia, o
senhor concorda?
- Para entender nós temos dois caminhos: o da
sensibilidade que é o entendimento do corpo; e o da
inteligência que é o entendimento do espírito.
Eu escrevo com o corpo
Poesia não é para compreender mas para incorporar
Entender é parede: procure ser uma árvore.
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Natureza é fonte primordial?
- Três coisas importantes eu conheço: lugar
apropriado para um homem ser folha; pássaro que se
encontra em situação de água; e lagarto verde que
canta de noite na árvore vermelha. Natureza é uma
força que inunda como os desertos. Que me enche
de flores, calores, insetos, e me entorpece até a
paradeza total dos reatores
Então eu apodreço para a poesia
Em meu lavor se inclui o Paracleto.
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Água, s. f.
Da água é uma espécie de remanescente quem já
Incorreu ou incorre em concha
Pessoas que ouvem com a boca no chão seus
Rumores dormidos pertencem das águas
Se diz que no início eram somente elas
Depois é que veio o murmúrio dos corgos para dar
Testemunho do nome de Deus
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Inseto, s.m.
Indivíduo com propensão a escória
Pessoa que se adquire da umidade
Barata pela qual alguém se vê
Quem habita os próprios desvãos
Aqueles a quem Deus gratificou com a sensualidade
(vide Dostoievski, Os irmãos Karamazov)
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Sol, s. m.
Quem tira a roupa da manhã e acende o mar
Quem assanha as formigas e os touros
Diz-se que:
se a mulher espiar o seu corpo num ribeiro
florescido de sol, sazona
Estar sol: o que a invenção de um verso contém
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Pedra, s. f.
Pequeno sítio árido em que o lagarto de pernas
areientas medra (como à beira de um livro)
Indivíduo que tem nas ruínas prosperantes de sua
boca avidez de raiz
Designa o fim das águas e o restolho a que o homem
tende
Lugar de uma pessoa haver musgo
Palavra que certos poetas empregam para dar
concretude à solidão
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Árvore, s. f.
Gente que despetala
Possessão de insetos
Aquilo que ensina de chão
Diz-se de alguém com resina e falenas
Algumas pessoas em quem o desejo
é capaz de irromper sobre o lábio
como se fosse a raiz de seu canto
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Que pessoa você é?

Maria José Pessoa, 20 de novembro de 2014