In paths untrodden, (…)
Here by myself away from the clank of the world, (…)
Strong upon me the life that does not exhibit itself, yet contains all
the rest,
Resolv’d to sing (…).
Walt Whitman, Calamus
(tradução da
autora:)
Por caminhos
inexplorados, (…)
Aqui a sós
comigo, longe das grilhetas ruidosas do mundo, (…)
Sentindo em mim
a vida que não se exibe e contudo tudo contém,
Decidi-me a
cantar (…).
1.
Os animais
mostram-se muito mais satisfeitos com a mera existência do que nós.(…)
Ao animal
falta tanto a ansiedade como a esperança, porque a sua consciência se restringe
ao que lhe é
claramente evidente no presente: o animal é o presente encarnado.
Schopenhauer, Sobre
o Sofrimento do Mundo
Vive connosco
essa pergunta inicial e fatal: quem sou eu? Persegue-nos, acompanha-nos,
desdobra-se, transforma-se, adormece, para depois despertar ainda mais plena de
seiva.
Arranca-nos da
rotina; coloca-nos na rotina: sacode-nos, embala-nos, enlouquece-nos.
Quem sou eu?
Ensaiamos
soluções; praticamos respostas. E nunca nenhuma se mostra definitiva.
A dinâmica da
existência, o devir que nos constitui, bafeja-nos com a alegre e trágica
siamesa da vida que é a mudança. Heraclito bem o sabia. Outras são as águas ao
reentrarmos no rio. Quem sou eu é algo que vai na corrente, que tem que
aprender a nadar enquanto olha para si (tarefa impossível?), a querer-se
compreender.
E que dizer
desse rio?
E dos outros
seres que me acompanham?
2.
Se conseguirmos
alhearmo-nos das nossas preocupações imediatas e encarar o mundo como um todo e
o nosso lugar nele, veremos que existe algo absurdo na ideia de que as pessoas
têm dificuldade em encontrar por que viver. Afinal, há tanto que precisa ser
feito.
Peter Singer, Como
havemos de viver?
Seja eu quem
for, sou com os outros, em permanente relação, influência e condicionamento
recíprocos. Coabito a Terra em parceria que – sei – deve evitar o conflito, a
perturbação agressiva, o desequilíbrio que pode conduzir à morte – de espécies,
de habitats, de culturas, do mundo natural, da nossa casa, nosso ecossistema.
O que precisa
ser feito – por cada um de nós; por todos – é tomar consciência das
consequências dos nossos gestos, das nossas atitudes e ações.
Se
desconhecemos quem realmente somos (pois “um sentido nunca se completa enquanto
há vida”1, é contudo certo que “estamos sempre
dentro da nossa própria cabeça”2
e que “[o] que quer que
sejamos (…) é como uma espécie de codificação que (…) se vê convocada para uma
consciencialização, ou liberdade, que pode construir tudo outra vez.”3
A liberdade
permite o erro e permite também a sua correção, a aprendizagem dos caminhos que
conduzem ao bem ou ao mal, para que a escolha ocorra da forma desejada.
Desejável.
3.
[O] trabalho
a fazer, e que é mais difícil de reconhecer, consiste nas mudanças necessárias
que dizem respeito aos padrões diários de atenção. Olhar as aranhas. Olhar os
céus. Passear. Fazer jardinagem. Alimentar os pássaros. Falar com os animais. (…)
Esta é a espécie de “etiqueta” de que eu falo: não reivindicar todo o espaço
para nós mesmos, aprender a ouvir, aprender a acolher um maior mundo, outras
presenças, re-equacionar as nossas vidas.
Anthony Weston, Is it too late?
Sou um ser
livre que deseja.
Desejo ter e
criar prazer. Ou bem-estar. Ou felicidade.
Para Stuart
Mill, felicidade é prazer e ausência de sofrimento. O princípio da maior
felicidade afirma que esta é aquela que dá mais prazer e menos sofrimento ao
maior número possível de pessoas.
Partindo deste
(ainda que discutível) pressuposto, perguntamos: será a felicidade apenas
atributo das pessoas humanas? Bem-estar e sofrimento são estados exclusivamente
humanos? Posso ser feliz se os outros – humanos e não-humanos – o não forem?
Viverei bem com o meu bem-estar se a meu lado alguém – pessoa ou (?) animal –
estiver em sofrimento? Não sou eu um ser-em-relação, permanentemente em
relação? E em relação, de que forma? Com base em que representação dos outros
seres e de mim mesma?
Lancemos a
provocação:
“Tanto para
Singer como para Regan, seriam pessoas todos os primatas e, tendencialmente,
todos os mamíferos com mais de um ano.”4
Sobre este tema-problema
(definição do conceito de “pessoa”, na sua eventual oposição ao conceito de
“animal”), apresentamos as seguintes posições (vide Anselmo Borges, Deus e o
Sentido da Existência, Gradiva, Lisboa, 2011, p. 54):
- o
predomínio, no Ocidente, da conceção kantiana que só reconhece direitos às
pessoas humanas;
- o movimento
animalista, que defende a tese de que há animais não humanos que são pessoas;
- a proposta
de um modelo de sociedade que reconhece a dignidade dos humanos mas tem em
atenção o valor dos animais;
o que requer
argumentar em torno da noção de “pessoa” que cada indivíduo ou corrente tiver
como sua. Assim, transcrevemos os seguintes excertos (in Anselmo Borges, op.
cit.pp. 54/5:), na tentativa de avançar na opção por um modelo justo de
conduta:
“Num texto
famoso de 1789, Jeremy Bentham inquiria: Qual é a característica que confere o
direito a uma consideração igualitária? E respondia, perguntando: «Será a
faculdade da razão ou, talvez, do discurso? Mas um cavalo adulto é, para lá de
toda a comparação, um animal muito mais racional, assim como mais sociável, do
que um recém-nascido de um dia, uma semana, ou até de um mês. Mas suponhamos
que não era assim; de que serviria? A questão não é: consegue raciocinar?,
consegue falar?, mas: pode sofrer? »5
O chamado utilitarismo moral coloca o centro precisamente na
capacidade de sofrer e de sentir prazer. Para Peter Singer, defensor célebre
desta concepção, os seres sensíveis têm interesses, concretamente o interesse
do maior prazer possível e da menor dor possível, seguindo-se daí que, ao
contrário da concepção anterior, temos deveres directos para com todos os seres
capazes de sentir. (…) [E]screve textualmente, em ´´Etica Prática: «Devemos rejeitar a doutrina que
coloca a vida dos membros da nossa espécie acima da vida dos membros de outras
espécies. Alguns membros de outras espécies são pessoas; alguns membros da
nossa não o são. De modo que matar um chimpanzé, por exemplo, é pior que matar
um ser humano que, devido a uma deficiência mental congénita, não é capaz nem
pode vir a ser uma pessoa.»
(…) A filósofa
Adela Cortina, [em] Las fronteras de la persona, atravessa toda esta
problemática para defender a sua tese[:] A vida é valiosa por si mesma, mas
ainda mais a dos seres sensíveis, que têm a capacidade de sofrer e ter prazer.
Os animais têm um valor intrínseco e não meramente instrumental, havendo, por
isso, uma obrigação directa de não lhes causar dano.”
Retomando a
posição utilitarista, verificamos que Singer “postula a igualdade de
consideração ética para todos os seres sencientes (…). Assim, «se um ser sofre,
não pode haver nenhuma justificação moral para recusar ter o sofrimento em
consideração. […] Se um ser não tem capacidade de sofrer ou de sentir alegria
ou felicidade, não há nada6
para ser tido em conta.
Logo, o limite da senciência7
[…] é a única fronteira
defensável para a preocupação pelos interesses dos outros.»”8
É também de
referir que há “correntes biocêntricas e ecocêntricas da Ética Ambiental [que]
pretendem alargar ainda mais o critério de consideração moral, reportando-o,
respectivamente, ao fenómeno da vida e à noção de ecossistema.”9
Não posso,
portanto, viver bem com a dor espalhada e espelhada à minha volta. Não posso
aceitar senão o universal como princípio de conduta. O meu horizonte de ação é
o mundo e o universo de seres vivos que o habitam. A maior, a única felicidade
será a que, pelo menos, trouxer bem-estar a todos os entes sencientes. Aquela
que os resgatar da dor que possam sentir. A que permitir da melhor forma que a
diversidade de vida animal – e da Vida no seu todo - prolifere em natural
equilíbrio. Ao proposto imperativo de Hans Jonas10 que
proclama
«Age de tal
modo que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida
autenticamente humana sobre a Terra»,
acrescentaria,
responsabilizando-nos:
«Age de tal
modo que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida
autenticamente humana que promova a permanência da diversidade e a
felicidade das outras formas de vida sobre a Terra».
Por sobre as intransponíveis (porque constitutivas) situações
de sofrimento que qualquer forma de vida experiencia e saudavelmente procura
evitar, sobressairia, então, aplicado
este imperativo, o rosto da alegria, multifacetado na diversidade de vidas que
a Vida alberga.
4.
[A] medida do sofrimento
aumenta no homem muito mais que o gozo, o que é em grande parte realçado no
facto de, na realidade, ele saber o que é a morte, enquanto o animal [não
humano] apenas instintivamente foge dela sem de facto a conhecer e, portanto,
sem a ter em vista, o que o homem, pelo contrário, tem sempre presente.
Schopenhauer, Sobre o Sofrimento do Mundo
Como escapar
ao sofrimento, se ele nos constitui? (Não será ele a medida da ética?)
De que quero
eu, humana, ser salva (curada, rendida, remediada, resgatada)? Do sofrimento? Isso
conduzir-me-ia à impossibilidade de contactar com a realidade e à ignorância do
que seria a alegria.
Disso, não
quero ser salva (salvação exterior).
Disso, não
quero salvar-me (salvação interior).
Quero a vida
tal como ela é e eu posso melhorá-la (nós podemos melhorá-la).
Também não
quero a eternidade. Quero completar o sentido da minha existência passando pela
porta da morte (por essa porta que é a morte). Lá chegarei (lá, lugar; lá,
tempo, instante). Consciente disso, percebo que esta casa onde vivemos a prazo
é a minha e é a dos outros seres (os que já conheço e os que posso e quero vir
a conhecer).
Há tanto a
fazeri; há tanto a salvar, há muito a
resgatar da aniquilação a que o espécime humano condenou.
Há todo um
planeta a cuidar. É desejável mantê-lo, vivo e diverso. Pois a diversidade da
vida antecedeu-nos e coube-nos em herança – a proteger.
Para isso, há
que cuidar deste ser que vejo no passeio, ouço no ramo da árvore, liberto do
cativeiro do zoo, devolvo à vida natural que é a sua, prescindo de incluir na
minha alimentação, ajudo a perseverar no seu ser11.
Para tal, é forçoso enfrentar e ultrapassar as contradições
e incongruências da minha conduta diária. Com algum sofrimento? Decerto; mas
com muito, muito mais alegria.
Maria José Pessoa
novembro 2014
______________________
1 José Maurício de Carvalho,
http://www.ufsj.edu.br/portal2-repositorio/File/revistaestudosfilosoficos/art3-rev5.pdf
2 Valter Hugo Mãe, Crónica «Autobiografia Imaginária» - “Pessoas”, in Jornal
de Letras nº 1147, 17 a 30 de setembro de 2014
3 Ibidem
4 in Cristina Beckert, «Ética
Animal: uma contradição nos termos?», in
Cristina Beckert (org. e
coord.), ´´Etica Ambiental – uma ética para o futuro, Centro de Filosofia da
Universidade de Lisboa, 2003, nota 12, p.62
Proponho, para progredirmos na
investigação deste tema, a seguinte definição de pessoa: sujeito que age
de forma consciente, voluntária e intencional.
5 Sublinhado nosso
6 Não há mesmo nada?
7 Senciência: capacidade de sentir, de perceber os efeitos das impressões
sensíveis (ap. Dicionário Houaiss do Português Atual)
8 In Cristina Beckert, op. cit., pp. 56/7
9 Ibidem, nota 5 da p. 57
10 in Le Principe Responsabilité - Une Éthique pour la
Civilisation Technologique, Éditions du Cerf, pp. 30-31 (cit. in Contextos –
manual de Filosofia do 10º ano de escolaridade, Porto Editora, p. 162)
11 “Albert Schweitzer, filósofo alemão e Prémio Nobel
da Paz em 1952, considerava que todos os seres vivos possuíam uma will-to-live,
uma vontade de viver que merece ser respeitada e preservada. Na obra Civilization
and Ethics e referindo-se ao ser humano que vive o princípio da reverência
pela vida, Schweitzer (1923) escreveu:
Se ele sair à rua após uma tempestade e vir uma
minhoca que se perdeu, ele compreende que ela secará ao Sol se não alcançar
rapidamente terra húmida onde rastejar, e então ele remove-a das pedras
mortíferas e devolve-a à relva luxuriante. Se ele passar por um insecto que
caiu numa piscina, dá-se ao trabalho de lhe fazer chegar uma folha ou galho no
qual ele possa trepar e salvar-se.”
Manuel Magalhães-Sant’Ana,
“Consciência animal: para além dos vertebrados”, in Jornal de Ciências
Cognitivas da Sociedade Portuguesa de Ciências Cognitivas
(http://jcienciascognitivas.home.sapo.pt/09-03_santana.html
________
i Como
demonstração de que é possível fazer o tanto que precisa ser feito, sugiro a
consulta do relato de um projeto já concretizado, com excelentes resultados:
Ana Maria Bettencourt e Manuel Carvalho Gomes,
Nos Trilhos dos Açores – Educação para a Cidadania, Tinta da China, março de
2014.